Orçamento modesto
O arsenal à disposição de Coutinho é o maior que um presidente do BNDES já teve, mas torna-se modestíssimo quando comparado aos pacotes recém-divulgados por governos mundo afora. O protagonista da cena neokeynesiana é Obama, que em menos de um mês já anunciou gastos de três trilhões de dólares para apoiar o setor privado. França e Alemanha anunciaram pacotes superiores a 700 bilhões de dólares, enquanto Inglaterra, Japão e China prometeram gastos próximos a 600 bilhões. Nesse cenário, os 120 bilhões de reais do BNDES, ou 53 bilhões de dólares, não chegam a impressionar – é menos dinheiro do que os 80 bilhões de dólares destinados pelo governo americano para salvar apenas dois bancos, Citi e Bank of America. Na escala brasileira, porém, o dinheiro do BNDES mexe com o funcionamento da economia. Afinal, ele detém 52 bilhões de reais em participações no capital de grandes empresas, mais que o valor de mercado do Banco do Brasil. E cerca de 14% do investimento total feito no ano passado veio do banco.
Desde que Coutinho assumiu o BNDES, em abril de 2007, seu poder de influência no Governo só cresce. Ex-professor da Universidade de Campinas e ex-sócio da consultoria LCA, ele é amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que costumava ouvi-lo sobre assuntos econômicos antes de convidá-lo para presidir o banco. Também é amigo de Dilma Rousseff, provável candidata à sucessão de Lula, desde que ela foi sua aluna no mestrado da Unicamp. Os dois mantêm uma relação de parceria em que há espaço para conselhos pessoais e políticos. Auxiliares próximos de Dilma dizem que Coutinho é um dos poucos colegas de Governo que nunca tomaram uma descompostura pública da ministra.
Personagem central na execução do Programa de Aceleração do Crescimento (o BNDES financiará 20% do PAC) e idealizador da política industrial do governo Lula, Coutinho tem como meta a criação de grandes grupos empresariais de capital nacional capazes de competir no exterior. O exemplo mais recente foi a compra da Aracruz pela Votorantim, que criou a maior fabricante de celulose do mundo. O BNDES emprestou 2,4 bilhões de reais à Votorantim para comprar as ações da Aracruz a um preço maior que o valor de mercado, assumindo dívidas de mais de 10 bilhões de reais. Em 2008, o banco emprestou 2,6 bilhões de reais para a Oi comprar a Brasil Telecom, tornando-se sócio da nova operadora, uma supertelefônica brasileira. Identificado como expoente dos chamados desenvolvimentistas, Coutinho sempre defendeu uma participação mais forte do Estado na economia. O agravamento da crise deu novo vigor a essa teoria e funcionou como uma injeção de adrenalina no já workaholic presidente do BNDES.
Um movimento importante de Coutinho ocorreu nos bastidores, ao alertar os membros do Governo de que a economia brasileira não estava "blindada". Em seguida, encomendou à área de pesquisa econômica uma revisão para adequar as projeções de investimento em 2009 ao momento menos auspicioso. Mais recentemente, despachou técnicos para colher impressões na China, na Índia, na Europa e nos Estados Unidos e fazer contato com potenciais interessados em investimentos no Brasil. No final de janeiro, foi pessoalmente a uma reunião de bancos em Zurique, na Suíça, para anunciar que o Brasil pode ser uma boa oportunidade de investimento. Os dados colhidos por seus técnicos se transformaram em informes semanais que Coutinho repassa aos colegas do Governo, pessoalmente ou por e-mail. Além dele, só o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, tem rotina semelhante de produção de informações. "O preparo demonstrado pelo Luciano foi fator decisivo para ele assumir o protagonismo que vem tendo", diz um ministro da área econômica.
"Acabei fazendo de tudo um pouco no Governo"
Num governo como o do presidente Lula, com amplo histórico de divergências públicas entre ministros e atritos com ex-presidentes do BNDES, é notável que Coutinho tenha conseguido tanta influência sem provocar rusgas. Tamanha unanimidade é fruto de paciência e habilidade política. Ex-auxiliar de Ulisses Guimarães e de Tancredo Neves, ele parece ter aprendido com os dois políticos a arte de conseguir o que quer sem desagradar a ninguém. Não ferir suscetibilidades foi o principal argumento usado por ele para não dar entrevista para esta reportagem. Mas, em conversa recente com um amigo, Coutinho deixou claro que seu papel hoje vai bem além do que o cargo lhe confere. "Vim para ser presidente do BNDES, mas acabei fazendo de tudo um pouco no Governo", disse ele, com ar cansado.
É natural que os bancos públicos sejam mais pressionados em momentos de crise. Só em dezembro, enquanto o crédito nos bancos privados e estrangeiros permaneceu estagnado, os bancos públicos aumentaram em quase 4% sua participação, para 36,25% do total concedido. Os resultados do BNDES em 2008 já foram afetados por essa pressão. De 2007 para 2008, seu lucro caiu de 7,3 bilhões para 4,7 bilhões de reais, principalmente por causa da redução da taxa de intermediação de empréstimos – medida já decorrente do cenário de crise e destinada a incentivar novos investimentos. "Os números mostram que o banco está aumentando sua exposição a riscos", diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega. No caso do BNDES, a corrida por mais empréstimos representou a inversão de uma tendência. Desde 2005, embora tivesse orçamentos crescentes e registrasse recordes de empréstimos, a instituição deixou de ser a principal fonte de financiamento das companhias nacionais – função em que foi superada pelo mercado de capitais. Começaram a ser frequentes as críticas ao fato de o banco concentrar 70% de seus empréstimos a grandes empresas em vez de priorizar as pequenas e médias e os investimentos em infraestrutura, com maior impacto social. Diante da crítica, Coutinho sempre defendeu que, por causa de lacunas do mercado, o banco ainda não poderia deixar de apoiar a grande indústria. "Essa é uma situação transitória", afirmou em maio de 2008.
Com a crise, o mercado financeiro se tornou, ele próprio, uma lacuna, e mesmo os mais críticos do modelo de operação do BNDES passaram a defender a necessidade de maior intervenção do banco. "Em época de crise, é vantagem ter um órgão capaz de continuar financiando projetos e empresas no longo prazo", diz o ex-presidente da instituição Francisco Gros, hoje vice-presidente da OGX, uma das empresas de Eike Batista. "Nenhum outro país tem um instrumento como esse". A questão agora, para a maioria dos economistas consultados, não é se o BNDES tem de intervir, mas como fazê-lo de forma eficaz. Ao anunciar os 100 bilhões adicionais para o banco, o Governo pretende inaugurar um ciclo virtuoso à la Keynes: novos investimentos geram mais empregos, que por sua vez estimulam a demanda, levando a mais investimentos. O governo de São Paulo, que concentra 40% da queda do emprego na indústria, anunciou recentemente um pacote de 21 bilhões de reais baseado em gastos públicos. Entre as medidas está a criação de uma agência de fomento similar ao BNDES, com orçamento de um bilhão de reais.
"O problema é que, se a tendência dos últimos meses se mantiver e a demanda continuar caindo, as empresas não terão razões para investir e não precisarão de crédito", diz José Márcio Camargo, professor da PUC do Rio de Janeiro. Para Ilan Goldfajn, ex-diretor do Banco Central e diretor da Ciano Consultoria, considerando-se que o dinheiro é captado pelo Tesouro à taxa de mercado (hoje em 12,75% ao ano) e repassado ao BNDES a 8,51%, o subsídio pode acabar saindo caro demais. Faria mais sentido reduzir as taxas de juro de toda a economia ou cortar impostos. "São medidas que não oneram o Estado e têm alcance mais abrangente e direto, sem beneficiar só algumas grandes empresas", diz Goldfajn. Entre todas as grandes, a mais beneficiada pelo BNDES na nova etapa de combate à crise será a Petrobras. Dos 100 bilhões de reais extras, 45 bilhões serão reservados para a estatal, que anunciou um plano de investimento recorde de 174 bilhões de reais para iniciar a exploração de petróleo na camada pré-sal. A ideia de incluir a Petrobras na conta foi do próprio Coutinho. O objetivo é reduzir a pressão que a estatal, com menos acesso a crédito no exterior, já estava fazendo sobre as instituições financeiras no Brasil. Em novembro, a Petrobras obteve dois bilhões de reais da Caixa Econômica Federal para financiar seu capital de giro.
Hospital de empresas
A atuação mais ativa do BNDES embute riscos – e a própria história da instituição ilustra alguns deles. O que se viu no passado é que, em momentos de crise, aumenta o risco de o BNDES socorrer empresas sem condições de pagar o financiamento. Foi o que aconteceu na década de 80, fase de recessão em que o banco se tornou um hospital de empresas falidas. "O processo de avaliação de empréstimos feitos pelo BNDES é de alto nível, mas a pressão por dinheiro é sempre um jogo de força", diz o economista Armando Castelar, ex-funcionário do banco e hoje analista do fundo Gávea Investimentos. Segundo Castelar, mais de 70 empresas foram salvas pelo BNDES nos anos 70 e 80, boa parte delas nos setores têxtil e siderúrgico. As que não faliram acabaram privatizadas. "Esse é o grande problema do BNDES. Você nunca sabe direito como são escolhidos os vencedores. Por que é melhor dar dinheiro à Votorantim e não à Braskem, por exemplo?", questiona Camargo. O BNDES afirma que os critérios de financiamento são rigorosos e que as empresas que não fornecerem garantias adequadas ou não usarem o dinheiro para fazer investimentos novos não terão direito a recursos. O banco argumenta que sua taxa de inadimplência, de 0,1%, é evidência de que a política está correta. E afirma ainda que, como o empréstimo do Tesouro só começará a ser pago em dez a 15 anos, quando se espera que as taxas de juro de mercado baixem, não haveria, de fato, subsídio.
Daqui para a frente, a pressão sobre o presidente do BNDES só tende a aumentar. Uma das propostas pendentes na agenda de Coutinho é formar um fundo de aval com recursos do Tesouro para garantir os empréstimos dos bancos privados a pessoas e empresas. A Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) propõe que o BNDES assuma parte do risco. "O Governo argumenta que os bancos estão excessivamente cautelosos", diz Rubens Sardenberg, economista-chefe da entidade. "Se é assim, o fundo seria apenas uma medida de estímulo. O custo só vai existir para o Governo se houver inadimplência". A proposta da Febraban, além de liberar crédito, ajudaria a reduzir o spread bancário, diferença entre os juros que os bancos pagam quando arrecadam recursos e as taxas que cobram dos clientes. Embora haja diversas maneiras de fazer isso – por exemplo, reduzir impostos que são 20% do spread -, mais uma vez a solução que ganha corpo pressupõe a ação do BNDES. Outra questão que ocupará a agenda de Coutinho nos próximos dias é a formatação do empréstimo à Petrobras, considerado prioridade pelo presidente Lula. A dificuldade das pequenas e médias empresas em conseguir crédito com os agentes repassadores do banco também é parte da agenda. Para Mailson da Nóbrega, a atuação intensa de Coutinho, embora produtiva, gerou superexpectativa em relação ao papel da instituição. "A competência do Luciano está fazendo com que o Governo ache que o BNDES é mais poderoso do que realmente é. O banco é importante, mas não pode resolver tudo", afirma Nóbrega. Ou pode?